Se na ciência foi necessário esperar a comprovação de Lavoisier (1743-1794) de que "Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma" a literatura, mais arte que ciência, já sabia disso há muito tempo, mas não viajarei no tempo – ficarei no século passado mesmo – e me restringirei a apenas dois nomes: Drummond e Mr. Bob Dylan. Nascido Robert Allen Zimmerman, em 24 de maio de 1941, Bob Dylan recebeu suas primeiras influências de Little Richard e Buddy Holly, dos quais fazia shows imitando-os, mas quando foi para a Universidade em 1959 é que começou a tornar a lenda que é hoje, pois se voltou para a folk music, impressionado com a obra musical do lendário cantor folk Woody Guthrie. E Carlos Drummond de Andrade, bom, esse despensa apresentação.
Mas ainda não disse a que vim. Faço agora: farei uma breve incursão pela obra desses dois poetas. A princípio não conseguimos ver relação entre os dois, o estilo de vida de ambos, as influências, o tempo etc. são totalmente diferentes. É inegável que a vida agitada e cheia de polêmicas de Dylan é um claro contraste à vida e as atitudes pacatas de Drummond. Mas é evidente a ligação temática que existe entre os dois, se as inspirações são de fontes diferentes o resultado é muito parecido.
A vida atribulada, inspiradora e extremamente criadora de Bob Dylan o fez produzir uma extensa discografia. O seu segundo álbum, “The Freewhellin' Bob Dylan” do ano de 1963 o consagrou como músico com a música "Blowin' In The Wind" (Soprando no vento), que se tornou um hino do movimento dos direitos civis. Mas logo Dylan mudou de rumos artísticos, afastando-se do movimento folk de protesto e voltando-se para canções mais pessoais, introspectivas, ligadas a uma visão muito particular de mundo (alguma semelhança temática com Drummond?). As questões político-sociais de seu tempo: racismo, guerra fria, guerra do Vietnã, injustiça social, perderam espaço para a temática das desilusões amorosas, amores perdidos, vagabundos errantes, liberdade pessoal, viagens oníricas e surrealistas. Esta transição se deu entre 1964 e 1966, período em que lançou os mais apreciados discos de sua carreira, com uma série de canções clássicas de seu repertório, entre elas "Like a Rolling Stone", que no ano de 2001, segundo a revista Rolling Stone, ficou em primeiro lugar numa lista com as 500 melhores músicas da história.
A poesia de Drummond também passou por algumas mudanças nos mais de 50 anos de produção poética, mas com uma vida menos turbulenta, característica marcante de um bom mineiro: pacato, sereno, observador e desconfiado, sempre! Drummond foi moderno na sua primeira fase, em seguida poeta social e depois poeta lírico e introspectivo. Sua obra traduz a visão de um individualista comprometido com a realidade social. Na verdade, na poética drummondiana há um predomínio da individualidade. O modernismo não chega a ser dominante nem mesmo nos primeiros livros de Drummond, Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934), em que o poema-piada e a descontração sintática pareciam revelar o contrário. A dominante é a individualidade do autor, poeta da ordem e da consolidação, ainda que sempre contraditórias. Alguns dos poemas do cidadão itabirano mais ilustre têm fortes semelhanças com as canções de Mr. Dylan.
A partir de Sentimento do mundo (1940), em José (1942) e, sobretudo, em A rosa do povo (1945), Drummond lançou-se ao encontro da história contemporânea e da experiência coletiva, participando, solidarizando-se social e politicamente, descobrindo na luta a explicitação de sua mais íntima apreensão para com a vida como um todo. (alguma semelhança temática com Bob Dylan?).
Prová-los-ei que isso não é uma leviandade de um ‘teórico literário’. No Poema das sete faces podemos perceber a figura do gauche, o desajustado, aquele incorrigível nefelibata e no poema José vemos um homem sem rumo, sem destino. E Like a rolling stone (Como uma pedra que rola), de Dylan, nada mais é do que uma nova forma de retratar esses seres que não se adaptam ao mundo ‘real’.
Poema das sete faces
Quando nasci um anjo torto
desses que vive na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.
(...)
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Like a rolling stone
How does it feel? (Como se sente?)
How does it feel? (Como se sente?)
To be on your own with no direction home? (Por estar sem um lar?)
Like a complete unknown? (Como uma completa estranha?)
Like a rolling stone? (Como uma pedra que rola?)
José
você marcha, José!
José, para onde?
Os poemas Mãos Dadas e novamente José voltam a fazer uma tabelinha com a obra de Dylan, porém com a música Blowin' In The Wind (soprando no vento) que através de sucessivas frases interrogativas e negativas mostram o descontentamento com o futuro, se é que enxergavam futuro num mundo pós-guerras: II Guerra Mundial, Fria e do Vietnã.
Mãos Dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
(...)
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela,
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida...
José
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode...
Blowin' In The Wind
How many roads must a man walk down before you call him a man?
How many times can a man turn his head, pretending he just doesn't see?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.
(Quantas estradas precisará um homem andar antes que possam chamá-lo de um homem?
Quantas vezes pode um homem virar sua cabeça e fingir que ele simplesmente não vê?
A resposta meu amigo está soprando no vento
A resposta está soprando no vento)
Gosto muito desses dois poetas. Ouvir Dylan numa noite de chuva fina e constante é extremamente convidativo e ler Drummond, independente da hora, é mais que bom. Mas ler um ouvindo o outro é algo que o meu modesto vocabulário ainda não possui um adjetivo à altura.
Provado por a mais b que há uma linha que interliga esses dois monstros das letras e que são dignos de serem lidos e ouvidos por muitas gerações ainda, me despeço por aqui.
E que os deuses do rock e da poesia digam amém ou saravá!
P. S – Há uns três meses me ocorreu esta soma poética e desde lá me ficou a idéia ...tenho que escrever sobre isso, até que enfim saiu.
4 acharam isso:
As diversas formas de expressar emoções são válidas. Sejam em letras de música ou na literatura. Bom texto e assunto interessante.
Misturas fazem bem... exceto a que eu vi agora a pouco na MTV: Paralamas do Sucesso tocando com apoCalypso.
Abraço, negão
Pow, sem comentários... Nem deveria ousar colocar Dylan ao lado daquilo lá, mas, mesmo assim, valeu pelo post...
Olá, Geraldo
Muito obrigada pela visita e pelo comentário em nosso blog.
Realmente, a cultura portuguesa tende à melancolia. E vc citou grandes escritores/poetas, dos quais sou muito fã.
E parabéns pelo blog, gostei bastante daqui. :)
Abraços
Olá Geraldo, agradeço a sua visita no meu blog. O seu texto é muito bom, inédito, eu não havia pensado nesta relação música x poesia. Uma ótima semana. Abraços!